domingo, 30 de maio de 2010

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Meu chão sumiu... fiquei pálido...
“- Sua Galinha!”- o pequeno Junior gritou, sem noção do que estava dizendo.
Imediatamente peguei o telefone e liguei para o Elder. Aquele miserável não foi nem capaz de me encarar numa hora dessas, mas procurei manter a calma e conversar com ele sobre essa terrível situação.
A medida que eu ia falando, Patrícia ia debochando das minhas palavras, me deixando cada vez mais irritado até que eu larguei o telefone e dei um murro na boca dela, depois a tranquei no quarto, permitindo sua saída só no dia seguinte, quando eu já estaria pronto para levá-la embora comigo.
Embora eu estava hospedado num hotel, minha irmã caçula, Márcia, morava na mesma cidade, então pedi a ela que ficasse com Patrícia uns dias, até que nossa casa fosse desocupada.
Patrícia continuava a dar trabalho, mas pelo menos estava longe daquele crápula. E eu sabia que ele não era homem suficiente para ir atrás dela.
Enfim, nossa casa ficou disponível e todos nos mudamos. Aos poucos a vida foi tomando seu rumo natural e saudável, com exceção de Patrícia e Suely. Patrícia voltou a se relacionar com seus antigos amigos, mas em casa não havia diálogo e Suely se culpava pelo seu comportamento. Patrícia começou a fazer terapia contra sua vontade, nós a obrigamos. Foi durante a terapia que descobrimos que o Elder persuadia Patrícia a ter relações com ele todos os dias e ela se sentia na obrigação de fazê-lo, além do medo da violência dele.
Os anos foram se passando e Patrícia foi superando seus traumas, fazendo novas amizades, arrumando novos namoradinhos e cuidando de seus irmãos. Já Suely, após as descobertas durante a terapia, tinha cada vez mais dificuldades em lidar com as frustrações da maternidade. Sentia-se culpada pela filha ter passado por tudo que passou e se embriagava todos os dias.
Junior já era um adolescente alegre e cheio de amigos. Nossa casa vivia cheia e essa era a única alegria da minha esposa. Os amigos de Junior adoravam conversar com a “Tia Suely”, mas quando eu chegava em casa, os meninos iam embora, Suely se fechava na cozinha e Junior no quarto. Minha única companhia era Cristina, que parecia viver num mundo a parte. Neste período, Patrícia já trabalhava e estudava a noite. Ela gostava de ter seu próprio dinheiro e enchia Cristina de mimos e presentes.

sábado, 29 de maio de 2010

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Era fim de ano e a previsão para nos mudarmos era para o começo do próximo ano. Faltava pouco mais de um mês, mas parecia que faltavam séculos.
No Natal, fomos para a casa de um amigo. Patrícia não queria ir, mas não lhe deixei escolha. Quando voltamos para casa, a rua estava cheia de papéis rasgados. A porta de nossa casa estava cheia de discos quebrados, roupas rasgadas, enfim, todos os presentes, bilhetinhos e cartas de amor que a Patrícia havia dado ao Elder estavam lá, destruídos. E junto, o coração da milha filha, que ficou despedaçado. Ela se trancou no quarto e chorava alto, de soluçar.
Gritava que preferia morrer a passar tudo que estava passando e não agüentava mais. Eu não tinha certeza do que ela estava falando, mas sofria tanto quanto ela. Deitei sua cabeça no meu colo, fiquei acariciando seus longos e belos cabelos negros, sem dizer apenas uma palavra e deixando minhas lágrimas escorrerem silenciosamente pelo meu rosto, até que consegui acalmá-la.
Depois que ela se acalmou, foi até a rua, juntou pedacinho por pedacinho do que encontrou, levou até seu quarto e calmamente recompôs todas as cartas, costurou as roupas, juntou os pedaços de discos, colocou tudo em uma caixa, escreveu um bilhete de Feliz Natal, juntou ao presente que ela havia comprado para o Elder e colocou o pacote na porta de sua casa, com a maior humildade.
Ao mesmo tempo que senti orgulho da atitude de minha filha, também senti vergonha pois ele não merecia que ela se humilhasse desse jeito.
Enfim, deu resultado, e para meu alivio imediato e meu desgosto eterno, eles fizeram as pazes.,
Porém, poucos dias depois, ouvi um bate boca na rua e sai para ver o que estava acontecendo. O Elder estava batendo novamente na minha filha, rasgando sua roupa, e a Katia chorava e implorava para ele parar. O pai dele friamente assistia a tudo, inerte. Quando sai, avancei para cima dos dois, os separando e gritei ao pai dele, porque ele não havia feito nada para impedir aquela tragédia. Sabe o que ele me respondeu? “Segure tua cabra que meu bode tá solto.” E, sem descruzar os braços, entrou para dentro de sua casa.
Fiquei indignado, minha vontade era avançar para cima dele, mas minha filha estava precisando mais de mim ao seu lado.
Na mesma noite, minha sogra, que estava passando o fim de ano conosco, acordou de madrugada e notou que Patrícia não estava no quarto. Desesperada, me acordou. Na mesma hora liguei na casa do Elder e ela estava lá. Então, ela voltou para casa e notei que ela estava só de camiseta e calcinha. Como pode, depois de tudo que aconteceu, minha filha ainda se sujeitar a se deitar com aquele porco nojento? Perdi o controle e a surrei, deixando marcas por todo o seu corpo.
A impressão que eu tinha é que este inferno nunca iria acabar. Na semana do ano novo, Patrícia tentou se matar, misturando veneno com vários remédios em um copo, mas Suely mais uma vez chegou a tempo de impedir que ela tomasse a mistura.
Na segunda semana de janeiro eu já estava trabalhando no novo escritório e só faltava nosso inquilino desocupar a casa para a família toda mudar. Eu passava a semana trabalhando e no final de semana viajava para casa. Mas durante a semana, muitas coisas aconteciam.
Patrícia saia sem dizer aonde ia, durante a noite ovos eram lançados em nossa garagem, o carro de Suely foi pixado, e a Suely não tinha mais o controle da situação.
Então, antes mesmo de acabar janeiro, num final de semana que fui visitar minha família, Patrícia pediu para nos reunirmos pois ela queria ter uma conversa séria com todos. Foi quando ela começou a chorar e disse que estava grávida....

sexta-feira, 28 de maio de 2010

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Chegou o feriado de setembro e decidi levar minha família para uma viagem, porém Patrícia praticamente exigiu que o Elder fosse junto. Mesmo contrariado, eu permiti.
Quando voltamos da viagem, minha casa tinha sido arrombada. Os ladrões tentaram fazer um buraco pela parede do meu quarto, mas não conseguiram perfurar a parede por completo. Conseguiram entrar pela janela, serraram a grade. Roubaram só uma máquina fotográfica, uma televisão e um videocassete VHS, de valor material. Entraram apenas no meu quarto e no quarto da Patrícia. As jóias da Suely ficaram todas expostas, em cima do fogão... não levaram nem um brinco.
Mas uma coisa estranha aconteceu: roubaram diário de Patrícia e uma pasta de desenhos dela.
Neste dia, quando chegamos, Patrícia e Elder foram para a rua e pareciam discutir, não sei o porquê. Só sei que o vi batendo na minha filha, no meio da rua. Quando eles me viram, saíram correndo. Meu sangue ferveu. Quando Patrícia chegou em casa, dei-lhe um tapa na cara para aprender que o único homem que poderia bater nela seria eu. Na mesma noite ela fugiu de casa.
Ficamos desesperados, fui na empresa que Elder trabalhava e disse que se minha filha não aparecesse, eu iria denunciá-lo à polícia, uma vez que ela só tinha treze anos. Todos fomos atrás dela, ate hoje eu tenho quase certeza que ele sabia onde ela estava. Depois de dois dias Patrícia me ligou, pedindo para buscá-la em frente ao Teatro Municipal.
Ao vê-la ali, minha emoção foi tanta que não pude fazer outra coisa, senão chorar... Abraçá-la forte e chorar... era o meu jeito de dizer que a amava.
A partir de então, nossas reuniões com os amigos já não eram mais tão legais quanto antes. Estávamos entregues ao sofrimento ao invés de conversarmos com nossa filha e tentarmos ajudá-la. Achávamos que ela tinha que aprender a lidar com o sofrimento sozinha, mas estávamos lá para ampará-la, se elas nos procurasse. Só se ela nos procurasse.
Suely voltou a se entregar à bebida e se descuidar e eu nada podia fazer. Me sentia de mãos atadas.
Meu desespero era tanto que, quando soube de uma vaga na empresa, para voltarmos para nossa cidade, imediatamente pedi para que eu fosse transferido. O salário era menor, iríamos perder os benefícios, mas nada se comparava ao inferno que estávamos vivendo.
Quando cheguei em casa, o Elder me esperava para conversarmos. Antes que ele falasse alguma coisa, seja lá o que fosse, eu queria conversar com minha família, expor minha decisão e pedi para que ele se retirasse, depois conversávamos.
Eu tinha a intenção de voltarmos a morar na mesma casa, matricular as crianças na mesma escola, para eles não passarem pelo sofrimento de adaptação novamente. Seria mais fácil voltarmos para um ambiente que já conhecíamos.
Ao comunicar a noticia, ninguém gostou da idéia. Principalmente Patrícia, que se rebelou gritando infâmias e dizendo que o Elder estava ali para pedi-la em casamento e correu para seu quarto. Suely, chorando com as coisas que também ouviu, correu atrás dela e a encontrou com uma faca nas mãos, a mesma encontrada em sua cama, no dia do assalto. Suely pulou para cima da Patrícia gritando e conseguiu tirar a faca das mãos de nossa filha, a impedido de cometer uma loucura.
Eu não conseguia entender como tinha conseguido ter deixado tudo chegar àquele ponto, mas com certeza deveria tirar minha família o mais rápido dali. Casar... como pode? Ela tinha acabado de fazer catorze anos... quem esse Elder pensa que ele é?
Patrícia já não se alimentava direito, reprovou de ano na escola, abandonou o curso de inglês e só vestia saias longas e camisas sem decote, por ordem do namorado. Vivia trancada no quarto, ouvindo som alto e não queria saber de conversa. Seus amigos não iam mais visitá-las. O telefone já quase não tocava mais. Onde eu tinha errado? Eu me culpava, Suely se culpava e cada um se isolava no seu canto.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

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Era comum abrir a geladeira de casa e encontrar cervejas, vinhos, licores e até mesmo bebidas destiladas. Tínhamos um barzinho na sala, todo espelhado, móvel em madeira nobre, com taças de cristais e bebidas importadas, que estava sempre com seu estoque sendo renovado.
As crianças estudavam de manhã e Suely acordava todos os dias às cinco horas da manhã. Preparava um lanche reforçado, um suco natural e sentava com os filhos na mesa, enquanto eles comiam. Mas seu café da manhã era um copo de cerveja e o hábito de beber a acompanhava durante todo o dia, somando no mínimo três garrafas por dia. Mas de nada eu poderia reclamar. Quando chegava em casa, ainda encontrava a janta pronta, fresquinha, meus chinelos na porta de casa e Suely acordada, ansiosa para saber como foi meu dia, assim como no começo do casamento, mesmo após dezoito anos de casados. Mas a diferença é que eu chegava cansado demais para conversar e principalmente para notar que seus olhos estavam fundos, avermelhados, sua pele pálida, sua fala mole, seu soluço insistente e seus reflexos alterados.
Depois que me formei, quando Cristina já estava com três anos, Junior com oito anos e Patrícia com doze anos, recebi uma oferta de promoção que implicaria em uma grande melhora de vida.
A multinacional que eu trabalhava me convidou para ser responsável de uma de suas filiais, em outro estado, com uma premiação que eu poderia quitar minha casa e ainda teria estabilidade de dois anos, todas as despesas pagas, inclusive a escola das crianças. Não hesitei em aceitar, mas quando dei a noticia para Suely, ela achou melhor darmos um tempo para contar às crianças, assim ela poderia prepará-los.
Depois de grandes transtornos, pois as crianças não queriam ir, mudar de escola e se separar de seus amigos, viajamos. Aluguei uma bela casa, com um quintal bem grande que prometia ser um belo lar. Uma vida nova, eu estava disposto a fazer diferente, ficar mais com meus filhos e me dedicar mais a minha esposa.
No começo foi difícil, Patrícia resistia em fazer novas amizades e começou a dar problemas de rebeldia, típicos da adolescência.
Suely, bem sociável e comunicativa como era, logo fez amizade com a esposa de um dos funcionários da empresa que também era novo na cidade. Aos poucos nossa vida foi se ajeitando, Patrícia começou a namorar e logo se enturmou com o pessoal de sua idade e alguns um pouco mais velhos. Não saia da casa de nossos vizinhos Katia e Elder, dois irmãos de dezesseis e dezoito anos, respectivamente, que se tornaram seus melhores amigos.
Eu e Suely fizemos amizade com a Elizabeth e o Pereira e todos os finais de semana nos reuníamos na casa de um ou de outro para curtimos o final de semana. Fred, meu funcionário e sua esposa Juliana também participavam das reuniões e esses dois casais se tornaram nossa nova família.
Estávamos sempre juntos, Suely estava muito feliz com a nova vida. Todas as sextas-feiras, Suely passava a tarde no salão de beleza se arrumando estava cada vez mais bela. As crianças tinham uma vida alegre e saudável e nós finalmente éramos uma família feliz.
Eu, conforme prometido, estava mais amigável e generoso, também me sentia mais feliz, mais maduro e mais responsável. Finalmente me sentia um pai de família.
Depois de um ano, não foi surpresa nenhuma quando Patrícia veio nos contar que estava namorando seu melhor amigo, Elder. Apesar dele ser de maior idade e minha filha ser apenas uma criança, nós aceitamos com alegria esse namoro, pois o rapaz era de uma boa família, muito bem educado e simpático.
Mas com dois meses de namoro, estes dois começaram tornar nossa vida um terrível pesadelo.
Patrícia não nos contava o que estava acontecendo, mas notávamos sua infelicidade e o ciúme doentio de seu namorado. Aos poucos Elder foi se tornando uma pessoa amarga e violenta.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

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O tempo passou, mudamos para nossa nova casa. Patricia cresceu, voltei a estudar, mudei para um emprego na área de vendas de uma multinacional.
Paramos de freqüentar o centro espírita, permiti Suely trabalhar em casa, como manicure e pedicure, e ela também pôde retomar seus estudos, mas logo engravidou novamente e teve que deixar de estudar e trabalhar.
Suely fez bastante amizades e nossa casa ficava sempre cheia. Eu tinha condições de pagar uma empregada para auxiliá-la nos deveres domésticos, assim ela tinha mais tempo para se reunir com as amigas.
Meu irmão Antonio Carlos já havia se casado e não morava mais conosco, mas minha irmã Izabel veio estudar na capital e estava morando em casa.
Tanta distração não me deixava perceber que Suely estava passando por problemas. E eu, sempre ocupado, não lhe dava a atenção merecida e prometida.
Durante a gravidez, dizia que o médico indicou a ela tomar malzebier (cerveja escura) para melhorar o leite, e o consumo de bebidas alcoólicas na nossa casa se tornava cada vez mais freqüente. Depois que o Junior nasceu, ela dizia que precisava tomar cerveja porque estava com pedras nos rins e a cerveja era diurética. Quando pedi um exame e o resultado mostrou que ela estava saudável, usou a desculpa de que a cerveja a ajudara expelir a pedra e para que não sofresse desse mal novamente, deveria beber diariamente. Eu nunca conversei com o médico dela para saber se era verdade. Talvez não quisesse saber.
Quando Suely engravidou da Cristina, eu estava cursando a faculdade e chegava todos os dias tarde da noite. Com isso acabei me distanciando da minha família, mas não deixava faltar nada a eles. Achava que assim estava cumprindo minha função de pai. Pude pagar a melhor educação, numa escola de freiras, cursos de inglês, informática, atividades esportivas, passeios a lugares culturais e próximos a natureza. Nas férias eu tentava redimir minha ausência os levando à viagens caras e fabulosas. Conhecemos o Norte e Nordeste do país, sempre íamos às praias mais belas e bem freqüentadas do litoral do Brasil, cidades históricas e interioranas. Mas não percebia que coisas mais simples como um abraço, um beijo ou um mimo no momento que eu chegava em casa os fariam mais felizes. Nos finais de semana, sempre saíamos para almoçar fora. Mas só íamos a lugares que eu escolhia, só comíamos o que eu queria e quando voltávamos para casa, eu me estirava no sofá em frente à televisão, para assistir jogos de futebol ou tirar um cochilo, sempre estava cansado demais para brincar com meus filhos ou curtir minha esposa.

terça-feira, 25 de maio de 2010

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O tempo passou e nossa vida progrediu. Consegui comprar uma casa num sistema de cooperativa e Suely finalmente engravidou. Só que na época, conheci uma linda garota chamada Antonia. Ela era cliente do banco. Charmosa, meiga e inocente, não pude resistir. Trocamos telefone, passamos a nos encontrar no final do meu expediente e começamos a namorar. Eu dizia que não podia ficar muito tempo com ela pois estudava à noite. Ela acreditava e aceitava.
Certo dia, Antonia me flagrou com os documentos da cooperativa e eu tive que me explicar, então a pedi em casamento e disse que estava comprando aquela casa para nós dois.
Como poderia me casar com ela se já era casado e minha esposa estava esperando um filho meu? Me meti na maior encrenca, mas tive que sustentar a história por algum tempo.
Quando a casa ficou pronta, Patrícia tinha três meses, mas eu ainda estava com a Antonia, então atrasei nossa mudança para ganhar tempo, pois eu precisava descobrir um jeito de manter as duas relações que muito me faziam bem.
Pouco tempo depois, após um exaustivo dia de trabalho, ao chegar em casa, qual não foi minha surpresa ao encontrar Antonia, em minha casa, sentada no meu sofá, tomando café com minha esposa Suely... meu mundo desabou, não sabia o que fazer... Antonia correu para meus braços, sorrindo e me beijou, mas percebeu que eu não retribui tanta paixão.
- “Meu amor, não gostou da surpresa?” – perguntou Antonia, decepcionada – “Sua irmã Izabel me convidou para conhecer sua casa e vir jantar com vocês. Aliás, que linda sua sobrinha, como se parece com você.... Agora eu quero conhecer seus outros nove irmãos...” – disparou a falar mudando o tom da voz decepcionada para uma voz entusiasmada.
Espantado, eu olhava Suely e Antonia, juntas... não consegui esconder minha surpresa... peguei Antonia carinhosamente pelo braço, a sentei no sofá e me sentei ao lado dela. Suely permaneceu parada, assistindo tudo como se fosse um filme, passando na TV. Segurei as duas mãos da Antonia, respirei fundo e entreguei os pontos:
- “Antonia, esta moça se chama Suely e não é minha irmã, é minha esposa há seis anos e aquela criança linda que esta dormindo lá em cima, merece um pai melhor que eu, mas eu sou o pai que ela tem.”
Antonia silenciosamente baixou sua cabeça e dos seus olhos desceram silenciosas lágrimas.
Suely levantou, foi até a cozinha, trouxe um copo de água para a pobre garota e me pediu para ser honesto com ela pelo menos uma vez na vida. Dignamente nos deixou a sós para conversar.
Após Antonia ir embora, corri para o quarto da Patrícia, que tinha sete meses de idade na ocasião, ajoelhei-me nos pés de seu berço e jurei que a partir daquele dia eu seria o melhor pai e o melhor esposo que uma família poderia ter.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

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Comuniquei minha decisão à Suely e ela imediatamente se arrumou para voltarmos no centro espírita da Madrinha Teresa. A entidade que nos atendeu disse-nos que a Suely tinha que fazer um tratamento espiritual para engravidar e, para isso, precisávamos levar alguns materiais para o trabalho de cura. Ela também deveria trabalhar para o centro e desenvolver sua mediunidade afim de afastar espíritos obsessores de nossas vidas. Lembrei-me da visão de Suely no dia do incêndio e resolvi dar crédito ao tratamento.
Em poucos meses Suely estava trabalhando na roda e recebendo entidades em seu corpo, para atender pessoas aflitas em busca de ajuda, mas ainda não conseguia engravidar.
Comecei a pensar que o problema talvez fosse comigo, e procurei uma maneira de testar minha virilidade. Apesar de minha intima amizade com Inês, eu não tinha coragem de dizer essas coisas a ela... não com palavras... então comecei a usar de indiretas e atitudes para tentar transparecer minha aflição e procurar uma palavra amiga. Mas Inês interpretou minhas ações de outra forma, e para minha surpresa, passou a corresponder-me com insinuações que deixariam qualquer homem louco.
Foi ai que vi uma luz, talvez se me envolvesse sexualmente com Inês, e ela engravidasse a esterilidade não seria culpa minha. Então começamos a sair depois do expediente e engatamos um romance.
Tentei não ficar estranho com Suely, para que ela não percebesse, mas ela também não se importava de eu chegar em casa mais tarde. Ela continuava abatida e sem vontade. Só se animava às sextas-feiras, dia de nosso compromisso no centro de umbanda.
Consegui manter a relação com Inês durante um ano, mas durante um bom tempo ela insistia em tomar pílula anticoncepcional. Com muito jeito fui a convencendo de que eu queria ter um filho com ela, que deixaria Suely se ela engravidasse.
Consegui convencê-la. Em poucos meses Inês apareceu grávida!!! Quando ela me deu a notícia, senti um misto de felicidade e medo, afinal de contas não estava falando sério quando disse que ia abandonar Suely para viver com ela, mas Inês me conhecia como ninguém, então resolveu afirmar à sociedade que a criança era do seu marido e que ela iria largar o emprego para cuidar da família.
Nunca mais a vi, mas depois soube que ela deu a luz a um lindo menino e colocou o nome de Luiz Antonio, assim como o meu nome. Para falar a verdade, nunca soube se era mesmo meu filho, mas essa homenagem me dava confiança.
Fiquei mais motivado com o tratamento, mas Suely estava perdendo as esperanças, começou a ficar descrente com os acontecimentos no centro, até que um dia uma entidade intitulada Cabocla Iara incorporou na Suely e deixou um recado à ela, que quando partisse e Suely voltasse a si, teria uma marca para jamais se esquecer do seu compromisso com ela e que o caminho estava livre para concebermos um filho. De fato, quando a sessão encerrou, Suely estava com um corte no supercílio que lhe rendeu seis pontos.

domingo, 23 de maio de 2010

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Meses se passaram e eu consegui tirar da cabeça da Suely a louca idéia de freqüentar aquele “centro”. Mas as coisas não estavam muito bem no meu trabalho. Meu rendimento diminuiu, as vendas caíram e eu fui demitido. Fiquei arrasado, não imaginava como contar a triste novidade à Suely... Decidi voltar para casa a pé, a fim de esfriar minha cabeça e encontrar a melhor saída para aquela situação.
Qual não foi minha surpresa ao dobrar a esquina de casa e notar uma situação ainda pior. Suely estava sentada no chão, abraçada por Dona Ruth, em prantos, desesperada, gritando repetidamente que alguém estava dentro de casa. Quando olhei para cima, nossa casa estava em chamas e o corpo de bombeiros tentava combater o fogo para entrar e socorrer “quem estivesse lá dentro”, segundo Suely.
Quando ela me viu, estendeu-se sob meus pés implorando para que eu não brigasse com ela por nossa casa estar em chamas. Desesperadamente gritava que a culpa era “dele”, que “ele” havia colocado fogo em tudo, com seu charuto, e ainda estava lá dentro.
“Ele quem?” - Eu pensava – “Suely estava me traindo?”... Não conseguia raciocinar direito, então um dos bombeiros desceu as escadas de nossa casa e veio em nossa direção. Segurou minha esposa pelos braços pedindo que ela se acalmasse, pois não havia ninguém lá dentro. Tomei o lugar de Dona Ruth e esta foi buscar um copo de água com açúcar para Suely, que tremia e soluçava de pavor. Ficamos assistindo o trabalho dos bombeiros e vendo todos os nossos sonhos se desfazerem na fumaça negra ganhava o céu.
Quando Suely se acalmou, perguntei quem estava em casa, então ela disse que não o conhecia. Estava passando roupas quando ouviu uma risada, olhou para trás e viu um homenzinho com pouco mais de 1 metro altura, peles negras, traços marcantes no rosto, sorriso largo, bem trajado com um terno branco e um chapéu branco com fita vermelha. Ele segurava um charuto e o encostou na cortina, provocando o incêndio.
Assim que o fogo foi contido, o sargento do Corpo de Bombeiros veio conversar conosco. Disse que pela sua experiência, achava que o fogo teria sido provocado por um curto circuito na tomada da parede, atingindo a cortina, que fez com que o fogo se alastrasse. Na tomada tinham três aparelhos ligados ao mesmo tempo, provocando uma sobrecarga e originando o curto circuito. Disse não ter encontrado ninguém, e que alguns móveis e objetos haviam sido totalmente destruídos.
Pedi a Dona Ruth que levasse Suely para descansar enquanto eu tomada conta da parte burocrática do acidente, uma vez que o imóvel ela alugado e teríamos que dar satisfações ao proprietário. Mas a descrição do homem que Suely falou não saia de minha mente. Era exatamente a descrição de uma imagem de argila que vi no centro, no dia que estivemos lá pela primeira. Madrinha Teresa disse que o homem da imagem se chamava Zé Pilintra e era uma das entidades que trabalhava naquela casa.
Naquela semana ficamos hospedados na casa da Dona Ruth. Minha sogra, Dona Maria, usava seu horário de almoço e nos levava dois pratos de comida. Um para Suely e outro para mim, quando eu chegasse da rua após passar o dia procurando emprego.
Como diz o ditado, Deus fecha uma porta mas abre uma janela. Logo consegui um emprego num banco e alugamos um sobradinho na Vila Mariana, numa rua particular, fechada com portões.
Nesta época meu irmão Antonio Carlos veio do interior morar conosco e trabalhar na capital. Sua renda ajudava nas despesas. Suely cuidava de Priscila, a filha de um casal que se tornou nosso principal elo de amizades, o Paulo e a Ivone. Priscila adorava Suely e a chamava de “mamãe Shii”. Mas em pouco tempo, Paulo foi transferido para Belém do Pará, e a família toda teve que se mudar. Suely ficou arrasada e caiu em profunda depressão.
Eu não tinha muita paciência com a choradeira de Suely. Mal chegava em casa e me irritava em vê-la de camisola, estirada no sofá, olhando para a televisão ligada, mas com o pensamento longe. Aquela bela garota com quem me casei não estava mais lá. Suely cultivava olheiras por noites mal dormidas e começara a engordar por ficar em casa, na ociosidade, o tempo todo. Eu estava perdendo o interesse pela minha mulher.
No banco eu tinha uma amiga com quem desabafava meus desalentos. Inês era jovem, bonita, dinâmica e casada. Mas também tinha problemas com o marido, que não aceitava sua independência. Ela também era espírita, visitava um centro de candomblé. Com muita insistência, me convenceu de levar Suely de novo para o centro e procurar ajuda com Madrinha Teresa, para procurarmos respostas por causa do incêndio e da dificuldade da Suely de engravidar, uma vez que os médicos diziam que seu organismo era saudável.

sábado, 22 de maio de 2010

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Quando nos casamos, fomos morar num quarto de cortiço. A cozinha ficava do lado de fora, coberta por telhas, mas ao ar livre. Eu tinha dois empregos, para conseguir nos sustentar e ainda fazer um pé de meia para nosso futuro. Suely era uma mulher dedicada. Sempre que eu chegava em casa, a encontrava perfumada e bonita. Aliás, linda!!! Ela deixava meu chinelo em posição para eu calçar, na porta da sala. A janta na mesa. Sempre tinha uma cerveja gelada para acompanhar nosso jantar, enquanto conversávamos. Suely me tratava como um rei. Minhas roupas sempre limpas e cheirosas.
Nosso lar, apesar de simples, era bem organizado. Suely passava o dia se dedicando a casa, para que quando eu chegasse, sentisse orgulho de ter me casado com ela.
Mas eu sentia ciúme. Não entendia que ela se arrumava para mim. Sempre achava que ela tinha passado o dia na rua e acabara de chegar. Muitas vezes brigava com ela por isso. Houve vezes que eu a agredi e a proibi de usar maquiagens.
Muitas vezes eu chegava em casa cansado, de mau humor, e ela ouvia minhas reclamações. E quando eu chegava de bom humor, ai que ela queria ouvir mesmo minhas histórias. Eu narrava meu dia, e ela imaginava tudo em sua cabecinha fértil, como se ela estivesse vivendo aqueles momentos. Era como uma criança, quando a gente conta uma história, um conto de fadas.
Graças ao meu esforço e o companheirismo de Suely, ficamos apenas alguns meses morando naquele lugar. Logo consegui alugar uma casa maior, com quarto, sala e cozinha, em cima de um comércio, na Rua da Mooca. Era de esquina, portanto a casa tinha janelas grandes e era bastante iluminada.
Suely continuou a mesma mulher dedicada, mas eu percebia um ar de tristeza nela. Talvez fosse a vontade de ser mãe. Começamos a planejar a chegada de um filho. Suely ficava radiante com a idéia. Não podia ver uma criança na rua que seus olhos brilhavam.
Já estávamos dois anos casados, e eu estava em um emprego só, que me rendia quase a mesma coisa que os outros dois. E eu chegava em casa menos cansado, para me dedicar a minha linda esposa.
Eu era um bom vendedor, conseguia convencer as pessoas com facilidade e meu superior já tinha notado minha capacidade, dando-me um aumento nas comissões. Eu vendia enciclopédias, coleções de livros literários e livros de estudo. Também ganhava livros como prêmios de vendas, que eu guardava com muito orgulho, em casa. Sempre gostei de ler antes de dormir. Às vezes lia em voz alta para Suely participar do entretenimento. E ela escutava atenta, imaginando cada história, cada fato, como se tivesse acontecendo na vida dela. Eu tinha o objetivo de, no futuro, montar uma biblioteca particular e, quando me aposentasse, leria todos aqueles livros.
Um dia, Suely disse que queria estudar e trabalhar. É claro que eu não aceitei. Se a mãe dela não a permitia estudar, tinha um bom motivo para isso. E outra, para quê estudar, se ela era esposa do lar? E por que trabalhar se eu ganhava dinheiro suficiente para dar uma vida boa a ela?
Aos poucos fomos comprando mais utensílios para a casa e melhorando nosso padrão de vida. Pela primeira vez pude comprar uma televisão colorida. Para Suely, aquele era nosso maior tesouro. Ela adorava ver os comerciais e decorava todos os textos. Acompanhava as novelas e criava sempre uma história para cada personagem. E ficava revoltada quando a história não saia do jeito que ela gostaria que fosse.
Passou-se um ano e Suely ainda não conseguira engravidar.
No comércio abaixo de nossa casa, trabalhava Dona Ruth, um senhora de idade, muito vaidosa, que freqüentava um centro espírita de umbanda. Suely ficava fascinada com as histórias de Dona Ruth e enfiou na cabeça que não conseguia engravidar porque tinha um espírito ruim ao lado dela, que a impedia de ter filhos. Suely ficou tão abalada com isso, que acabou me convencendo a levá-la ao centro espírita.
Madrinha Teresa, a mãe de santo do terreiro, assim que pôs seus olhos em Suely, a chamou para o centro de uma roda. Mulheres vestidas com saias rodadas, coloridas e brilhantes, turbantes na cabeça e várias jóias, cantavam e batiam palmas em volta de Suely. Homens batucavam em instrumentos feitos de côco e couro. Davam ritmos as cantigas.
Dado um momento, Suely começou a rodopiar com seus braços abertos, depois se jogou no chão. As mulheres começaram a cantar mais forte e Madrinha Teresa entrou no círculo com Suely. Então ela se levantou, meio encurvada, em direção à Madrinha Teresa, com suas mãos para trás e seus olhos fechados. Suely ria de um modo diferente, escandaloso. Dona Ruth me explicou que ela havia entrado em transe. Um espírito havia tomado conta do corpo dela.
“- Que ridículo”, - debochei.
Fui criado na igreja católica, com princípios rígidos. Havia estudado para ser padre e, embora eu percebera que esta não era minha vocação, me mantinha fiel a Deus e aos princípios. Não acreditava que aquilo estava acontecendo e Suely estava compactuando com aquela farsa. Mas fiquei assistindo. Não iria fazer um escândalo na frente de todos, mas em casa Suely iria ter a lição merecida.
Deixei todo aquele espetáculo teatral dar sua seqüência. Quando Suely ”voltou a si”, dizia não se lembrar de nada, mas me olhava com cara de medo. Ela percebeu que eu não gostei do seu comportamento e sabia que uma surra a esperava em casa.

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Vivi 30 anos com Suely, minha primeira esposa, a trancos e barrancos, mas eu a amava. Ah, como eu a amava... Suely era linda quando a conheci. Parecia uma artista de cinema. Apenas 13 anos e corpo de mulher formada. Sua inocência a deixava ainda mais linda. Eu tinha 17 anos e acabara de sair do seminário. Estava jogando sinuca em bar quando ela passou, faceira, com sua irmã mais velha, Suzana. Seu sorriso meigo e doce, seus olhos grandes e brilhantes e sua boca carnuda e rosada me hipnotizaram. Foi amor a primeira vista.
Arranquei uma rosa vermelha do jardim da casa ao lado e corri atrás dela:
”-Uma flor para uma flor”, - e ela me respondeu timidamente com um sorriso e saiu correndo. Quatro anos depois estávamos casados.
À medida que as lembranças iam passando pela minha mente, meus passos iam diminuindo a velocidade. Havia um grande tronco de árvore caído no chão, seco e oco. Sentei no chão, escorei a cabeça no tronco e tentei controlar minha dor e minha respiração ofegante. O céu estava negro, com manchas avermelhadas. Uma noite bem intensa, mas sem nenhuma estrela, apenas uma penumbra. Eu sentia uma forte palpitação no peito, como se eu fosse explodir. Fechei os olhos e me entreguei à doce lembrança de Suely, quando jovem e radiante, no intuito de me acalmar.
Quando fui pedir à sua mãe para namorá-la, ouvi um verdadeiro sermão. Dona Maria era uma mulher jovem e bonita, mas com muitas marcas da vida. Fora abandonada pelo marido quando Suely tinha 1 ano de idade. Deixou seus três filhos, José Roberto, Suzana e a doce Suely no interior, com os avós, e foi para a capital para trabalhar na bilheteria de um cinema. Só via os filhos de quinze em quinze dias, quando levava o pouco dinheiro que ganhava para alimentá-los. Quando José Roberto fez 15 anos, o trouxe para trabalhar na capital, e dois anos depois, quando Suely estava com onze anos, trouxe as meninas também. Mas no caso delas foi diferente. Dona Maria e José Roberto saiam para trabalhar e Suely e Suzana ficavam trancadas no apartamento. Moravam numa região perigosa no centro da cidade, onde mulheres se prostituíam nas ruas. Dona Maria tinha medo de suas ingênuas filhas caíssem na lábia de algum cafetão da região, por isso as proibia até mesmo de estudar. As duas criavam seus mundinhos naquele apartamento e sonhavam com a vida de glamour que viam na televisão, ainda branco e preto, seu único contato com o mundo externo, sem a presença dos olhos vigiados da mãe.
Ali, aprenderam a fumar roubando cigarros de seu irmão, aprenderam a ter vaidades usando as maquiagens de sua mãe, mas guardavam a pureza de pensamentos não corrompidos pela revolução cultural contra o regime militar que ditava as regras da sociedade, em meios de drogas, sexo, libertinagem e luta pela liberdade de expressão.
Para elas, o mundo era entre as quatro paredes daquele pequeno apartamento, de onde saiam somente quando José Roberto ia visitar sua namorada. Dona Maria o obrigava a levá-las junto, como se suas presenças fossem inibir José Roberto de tomar atitudes profanas que desrespeitariam a honra de Cleuza. José Roberto falava para as duas ficarem dando voltas no quarteirão, assim poderia ficar sozinho com Cleuza para namorarem em paz. Numa dessas caminhadas que tivemos nosso mágico encontro.
Senti meus olhos pesarem, e me forcei a abri-los. Algo se mexia por baixo do meu corpo. De repente começou a brotar saliências do chão, por onde saiam cobras. Elas se entrelaçavam, como num ritual mágico. Tomei-me em desespero e fiquei paralisado. De repente senti como se estivesse flutuando. Eu ia subindo cada vez mais, e lentamente, como se algo ou alguém invisível estivesse me levantando. Meu corpo foi levemente se inclinando na vertical, e meus pés não alcançavam mais o chão. Olhei para baixo e as cobras haviam sumido. Imediatamente, senti uma forte pancada na barriga, como um soco vindo do nada, que me jogou longe. Fiquei alguns segundos caído no chão, atordoado. Precisava acordar desse pesadelo e voltar a realidade. Mas era tudo tão real, e eu não conseguia acordar. Dizem que em sonhos não existem sensações. Mas o frio vento batia em meu rosto, a pancada me deixara ainda mais dolorido no abdômen, como se não bastasse minha úlcera atacada e minha cabeça rodopiando... será que eu tinha tomado um porre, por isso não me lembrava do que tinha acontecido? Mas e o chão mole, as cobras, eu flutuando, o murro? Como explicar estas coisas virtuais? Só poderia ser um sonho.
Lembrei da minha infância, quando eu sempre sonhava com um lobo babando na minha frente, e eu ali paralisado... só então eu começava a correr e via um canavial, me escondia deitado no chão, ai eu acordava.
Comecei a correr sem parar, procurando pelo canavial, como se ele fosse o portal para a realidade. Quanto eu mais corria, mais o horizonte se distanciava. Era como se eu passasse dias correndo, talvez meses, sem parar. Na verdade eu estava sem noção do tempo. Passei as mãos por sobre meus cabelos, como um gesto de desespero, e comecei a gritar. Ouvi outra voz gritando como eu. Imediatamente parei e comecei a procurar, olhando para os lados:
- Quem está ai? – perguntei.
- Quem está ai? – a voz repetiu.
- Sou eu, Luiz, você sabe dos meus filhos ? – insisti.
- Sou eu, Luiz, você sabe dos meus filhos ? – a voz repetiu novamente.
- Chega de brincadeira, o que você quer de mim? – me desesperei.
- Chega de brincadeira, o que você quer de mim?, Chega de brincadeira, o que você quer de mim?, Chega de brincadeira, o que você quer de mim? – A voz repetia varias vezes a mesma frase, em meio a outras vozes dando gargalhadas.
Agachei no chão pressionando minhas mãos contra meus ouvidos e gritei: “PARE!” – e tudo parou. Ergui meus olhos lentamente para o céu e em prantos, roguei a Deus que me fizesse acordar.
Então um ponto luminoso se formou no céu, pequenino como uma estrela. Fiquei em pé ergui minhas mãos em direção ao ponto e, chorando, comecei a rezar o Pai Nosso. À medida que eu ia intensificando minha voz com fé, o ponto ia aumentando sua dimensão, como se estivesse descendo em minha direção. Tornei a repetir a oração, pois estava dando algum resultado, e eu queria ver no que aquilo ia dar.
Enquanto eu orava, a luz foi tomando forma. Surgiram duas ramificações em direção ao chão, como se fossem suas pernas, e do centro saíram duas ramificações laterais, como dois braços, que se estenderam em minha direção. Fiquei mudo diante de tanta beleza. A forma luminosa não tinha rosto, mas era possível identificar sua feição doce e fraterna.
Fiquei ali parado, estupefato. Aquilo só poderia ser outra alucinação. Sempre que tenho febre, tenho alucinações.... isso explicava minha visão para as coisas estranhas. Talvez, o quer que tenha acontecido, eu posso ter pego uma febre como conseqüência, por isso estava misturando realidade com alucinações.
A forma luminosa ia se apagando lentamente, cada vez que eu repetia em minha mente que aquilo não poderia ser real, até que ela sumiu.
Senti um vazio. Abaixei minha cabeça e no chão havia várias rosas vermelhas murchas. Olhei para cima e pétalas começaram a cair como chuva. Mais uma vez, lembrei-me de Suely, desta vez, deitada no caixão. Comecei a chorar desesperadamente.
Como pude deixá-la morrer? Como conseguia vê-la se destruindo e não fazia nada para salvá-la? Ao contrário, eu a empurrava cada vez mais para a desgraça. Uma doce menina, cheia de sonhos, casa-se com um homem que a ama tanto, mas destrói a vida dela, ano após ano, todos estes anos marcados com um bouquêt de rosas vermelhas. E as últimas rosas vermelhas que a dei foram para enfeitar seu caixão...

sexta-feira, 21 de maio de 2010

...............1

Abri os olhos, mas ainda estava sonhando... sim, porque uma realidade nunca seria do jeito que eu estava enxergando. Era uma catástrofe, tudo com cores escuras e frias, pedaços de pessoas mutiladas no chão. Meu estômago queimava em dor. Devia ser minha úlcera atacada. Eu estava meio exausto e tonto. Fui levantando aos poucos, sem entender direito o que estava acontecendo. O fedor era insuportável, eu mal conseguia respirar. Estava sufocado. Uma poeira de concreto embaçava a visão.
Tentei buscar em minhas lembranças o que teria acontecido, mas a busca resultava num vazio. Um vento forte, como um tufão, parecia ter me atirado nestes escombros e destruído tudo e todos ao meu redor.
A tragédia teria afetado minha memória, pois não me lembrava de nada. Quero dizer, lembrava do meu nome, Luiz, e dos meus três filhos, Patricia, Junior e Cristina.
Senti um aperto no coração ao lembrar deles. “Tenho que procurá-los” – pensei. “E se eles estiverem feridos?” - Sai correndo para qualquer direção, olhando para todos os lados, para ver se os encontrava.
Começou a me dar uma vontade incontrolável de chorar e correr. Logo eu, que já tinha passado por tantas tragédias, por que Deus faria isso comigo? Se existe outra encarnação, eu devo ter sido o pior dos seres humanos, e estaria pagando todos meus pecados agora... perder minhas duas esposas, minha empresa e todos os meus bens não teriam sido castigos suficientes?
Aos poucos fui lembrando de coisas do meu passado... pelo menos isso, quem sabe logo teria uma resposta para o que aconteceu.
Enquanto corria, vários pensamentos sórdidos passavam pela minha mente. Minha garganta parecia pegar fogo, devia de ser por causa da fumaça de concreto que embaçava minha visão e atrapalhava minha respiração.
Meu estômago parecia que estava se desmanchando, eu sentia uma cólica profunda e intensa. De repente, senti o chão mole. Meus pés começaram a afundar numa lama. Acelerei meus movimentos, me esforçando para sair dali, pois precisava encontrar meus filhos. Eles eram as únicas coisas que me restavam nessa vida. O Junior era desajuizado e irresponsável, mas um bom garoto, muito carinhoso e companheiro. A Cristina, minha caçulinha, um doce de garota. Ela estava prestes a completar dezoito anos, mas parecia uma menina.
Dezoito anos? Ouvi a voz dela dizer, em tom de desespero, soluçando de chorar:
“-Papai, esse é meu presente de dezoito anos?”
Era como se meu pensamento transpassasse minha cabeça e ecoasse no silêncio daqueles escombros. A frase se repetia tanto, e tão alto, que eu já não poderia saber se era meu pensamento ou minha filha gritando de verdade. E muitas vezes.
Tentei encontrar a direção da voz, corri por todos os lados, mas nada. De repente o silêncio voltou a tomar o seu espaço. Talvez a Patricia tivesse a encontrado e a salvado. Como sempre. Patricia era a mais velha, com 26 anos. Já era casada, mas desde que sua mãe faleceu, ela se tornara nossa mãe. Mãe dos meus filhos, e minha também. Cuidava de nós com todo seu carinho. Seu marido chegava a brigar com ela, por se dedicar tanto aos seus irmãos, afinal, agora ela era casada e seus irmãos estavam bem grandinhos.
Nós andávamos afastados de uns tempos para cá. Ela não aceitava minha nova esposa. Quando me casei com Vilma, para evitar confronto entre as duas, eu quase nunca visitava a Patricia. Isso a deixou rancorosa comigo, então ela também deixou de me procurar. Nem no último Natal me dera um telefonema.
Há poucos dias foi em casa, com um corretor de imóveis, anunciar minha casa para venda. Quando cheguei, estavam colocando a placa no portão. Ela me deu um beijo no rosto e disse que logo nossos problemas estariam resolvidos, pois, ao vender a casa, teríamos dinheiro para pagar as dívidas da minha empresa e ainda comprar um cantinho para o Junior e a Cristina morarem juntos, assim eu poderia voltar a viver com a Vilma. “Antes mal acompanhado, do que só.”- exclamou ela em tom de ironia.
A Vilma havia me deixado há um mês. Uma maldita sexta-feira ela reuniu seus três filhos que moravam conosco, Wilhian, Wesley e Yara, meu dois filhos, Junior e Cristina, na minha frente, e anunciou:
“- Reuni todos vocês aqui, para comunicar uma decisão que tomei. Esse final de semana vou me mudar dessa casa, com meus filhos. Levarei tudo que me pertence de fato e de direito, a partir do momento que nos casamos. Luiz, eu não consigo conviver com seus filhos, principalmente com o Junior, que é desaforado e me enfrenta, não aceitando minhas ordens. Aluguei um apartamento. Se você quiser vir comigo, será bem aceito, pois nós te amamos, caso contrário, fique você com teus filhos e eu com os meus. Mas lembre-se: só você, seus filho não. Já são bem grandinhos para seguirem suas vidas.”
Vilma era uma mulher forte e decidida, já era de se esperar isso acontecer... foi uma loucura casarmos em tão pouco tempo e impormos aos nossos filhos nossas condições, como se eles não tivessem vontade própria. Principalmente aos meus filhos, que perderam a mãe há um ano e ainda precisavam muito de mim. Fui egoísta e pensei só na minha carência afetiva.
Ao lembrar desses fatos, um grande sentimento de arrependimento e dor tomou conta de mim... Eu estava ali, naqueles destroços, sem saber o que havia acontecido e sem saber como meus filhos estavam... Será que eles ainda estariam vivos? Ai que dor insuportável eu sentia ao pensar neles... minhas dores físicas aumentavam e minha consciência parecia tomar vida e imitar as vozes dos meus filhos gritando comigo, dentro da minha cabeça... que tortura...