sábado, 22 de maio de 2010

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Vivi 30 anos com Suely, minha primeira esposa, a trancos e barrancos, mas eu a amava. Ah, como eu a amava... Suely era linda quando a conheci. Parecia uma artista de cinema. Apenas 13 anos e corpo de mulher formada. Sua inocência a deixava ainda mais linda. Eu tinha 17 anos e acabara de sair do seminário. Estava jogando sinuca em bar quando ela passou, faceira, com sua irmã mais velha, Suzana. Seu sorriso meigo e doce, seus olhos grandes e brilhantes e sua boca carnuda e rosada me hipnotizaram. Foi amor a primeira vista.
Arranquei uma rosa vermelha do jardim da casa ao lado e corri atrás dela:
”-Uma flor para uma flor”, - e ela me respondeu timidamente com um sorriso e saiu correndo. Quatro anos depois estávamos casados.
À medida que as lembranças iam passando pela minha mente, meus passos iam diminuindo a velocidade. Havia um grande tronco de árvore caído no chão, seco e oco. Sentei no chão, escorei a cabeça no tronco e tentei controlar minha dor e minha respiração ofegante. O céu estava negro, com manchas avermelhadas. Uma noite bem intensa, mas sem nenhuma estrela, apenas uma penumbra. Eu sentia uma forte palpitação no peito, como se eu fosse explodir. Fechei os olhos e me entreguei à doce lembrança de Suely, quando jovem e radiante, no intuito de me acalmar.
Quando fui pedir à sua mãe para namorá-la, ouvi um verdadeiro sermão. Dona Maria era uma mulher jovem e bonita, mas com muitas marcas da vida. Fora abandonada pelo marido quando Suely tinha 1 ano de idade. Deixou seus três filhos, José Roberto, Suzana e a doce Suely no interior, com os avós, e foi para a capital para trabalhar na bilheteria de um cinema. Só via os filhos de quinze em quinze dias, quando levava o pouco dinheiro que ganhava para alimentá-los. Quando José Roberto fez 15 anos, o trouxe para trabalhar na capital, e dois anos depois, quando Suely estava com onze anos, trouxe as meninas também. Mas no caso delas foi diferente. Dona Maria e José Roberto saiam para trabalhar e Suely e Suzana ficavam trancadas no apartamento. Moravam numa região perigosa no centro da cidade, onde mulheres se prostituíam nas ruas. Dona Maria tinha medo de suas ingênuas filhas caíssem na lábia de algum cafetão da região, por isso as proibia até mesmo de estudar. As duas criavam seus mundinhos naquele apartamento e sonhavam com a vida de glamour que viam na televisão, ainda branco e preto, seu único contato com o mundo externo, sem a presença dos olhos vigiados da mãe.
Ali, aprenderam a fumar roubando cigarros de seu irmão, aprenderam a ter vaidades usando as maquiagens de sua mãe, mas guardavam a pureza de pensamentos não corrompidos pela revolução cultural contra o regime militar que ditava as regras da sociedade, em meios de drogas, sexo, libertinagem e luta pela liberdade de expressão.
Para elas, o mundo era entre as quatro paredes daquele pequeno apartamento, de onde saiam somente quando José Roberto ia visitar sua namorada. Dona Maria o obrigava a levá-las junto, como se suas presenças fossem inibir José Roberto de tomar atitudes profanas que desrespeitariam a honra de Cleuza. José Roberto falava para as duas ficarem dando voltas no quarteirão, assim poderia ficar sozinho com Cleuza para namorarem em paz. Numa dessas caminhadas que tivemos nosso mágico encontro.
Senti meus olhos pesarem, e me forcei a abri-los. Algo se mexia por baixo do meu corpo. De repente começou a brotar saliências do chão, por onde saiam cobras. Elas se entrelaçavam, como num ritual mágico. Tomei-me em desespero e fiquei paralisado. De repente senti como se estivesse flutuando. Eu ia subindo cada vez mais, e lentamente, como se algo ou alguém invisível estivesse me levantando. Meu corpo foi levemente se inclinando na vertical, e meus pés não alcançavam mais o chão. Olhei para baixo e as cobras haviam sumido. Imediatamente, senti uma forte pancada na barriga, como um soco vindo do nada, que me jogou longe. Fiquei alguns segundos caído no chão, atordoado. Precisava acordar desse pesadelo e voltar a realidade. Mas era tudo tão real, e eu não conseguia acordar. Dizem que em sonhos não existem sensações. Mas o frio vento batia em meu rosto, a pancada me deixara ainda mais dolorido no abdômen, como se não bastasse minha úlcera atacada e minha cabeça rodopiando... será que eu tinha tomado um porre, por isso não me lembrava do que tinha acontecido? Mas e o chão mole, as cobras, eu flutuando, o murro? Como explicar estas coisas virtuais? Só poderia ser um sonho.
Lembrei da minha infância, quando eu sempre sonhava com um lobo babando na minha frente, e eu ali paralisado... só então eu começava a correr e via um canavial, me escondia deitado no chão, ai eu acordava.
Comecei a correr sem parar, procurando pelo canavial, como se ele fosse o portal para a realidade. Quanto eu mais corria, mais o horizonte se distanciava. Era como se eu passasse dias correndo, talvez meses, sem parar. Na verdade eu estava sem noção do tempo. Passei as mãos por sobre meus cabelos, como um gesto de desespero, e comecei a gritar. Ouvi outra voz gritando como eu. Imediatamente parei e comecei a procurar, olhando para os lados:
- Quem está ai? – perguntei.
- Quem está ai? – a voz repetiu.
- Sou eu, Luiz, você sabe dos meus filhos ? – insisti.
- Sou eu, Luiz, você sabe dos meus filhos ? – a voz repetiu novamente.
- Chega de brincadeira, o que você quer de mim? – me desesperei.
- Chega de brincadeira, o que você quer de mim?, Chega de brincadeira, o que você quer de mim?, Chega de brincadeira, o que você quer de mim? – A voz repetia varias vezes a mesma frase, em meio a outras vozes dando gargalhadas.
Agachei no chão pressionando minhas mãos contra meus ouvidos e gritei: “PARE!” – e tudo parou. Ergui meus olhos lentamente para o céu e em prantos, roguei a Deus que me fizesse acordar.
Então um ponto luminoso se formou no céu, pequenino como uma estrela. Fiquei em pé ergui minhas mãos em direção ao ponto e, chorando, comecei a rezar o Pai Nosso. À medida que eu ia intensificando minha voz com fé, o ponto ia aumentando sua dimensão, como se estivesse descendo em minha direção. Tornei a repetir a oração, pois estava dando algum resultado, e eu queria ver no que aquilo ia dar.
Enquanto eu orava, a luz foi tomando forma. Surgiram duas ramificações em direção ao chão, como se fossem suas pernas, e do centro saíram duas ramificações laterais, como dois braços, que se estenderam em minha direção. Fiquei mudo diante de tanta beleza. A forma luminosa não tinha rosto, mas era possível identificar sua feição doce e fraterna.
Fiquei ali parado, estupefato. Aquilo só poderia ser outra alucinação. Sempre que tenho febre, tenho alucinações.... isso explicava minha visão para as coisas estranhas. Talvez, o quer que tenha acontecido, eu posso ter pego uma febre como conseqüência, por isso estava misturando realidade com alucinações.
A forma luminosa ia se apagando lentamente, cada vez que eu repetia em minha mente que aquilo não poderia ser real, até que ela sumiu.
Senti um vazio. Abaixei minha cabeça e no chão havia várias rosas vermelhas murchas. Olhei para cima e pétalas começaram a cair como chuva. Mais uma vez, lembrei-me de Suely, desta vez, deitada no caixão. Comecei a chorar desesperadamente.
Como pude deixá-la morrer? Como conseguia vê-la se destruindo e não fazia nada para salvá-la? Ao contrário, eu a empurrava cada vez mais para a desgraça. Uma doce menina, cheia de sonhos, casa-se com um homem que a ama tanto, mas destrói a vida dela, ano após ano, todos estes anos marcados com um bouquêt de rosas vermelhas. E as últimas rosas vermelhas que a dei foram para enfeitar seu caixão...

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